imagem: Flickr - joaobambu
Enganou-se quem pensou estar diante de um texto sobre regimes ditatoriais. Não é deles que se trata aqui. Toque de recolher é o que um juiz de uma pequena cidade do interior de São Paulo, Ilha Solteira, impôs às crianças e adolescentes daquele município. A decisão do juiz inclui também limitar o uso das lan houses da cidade aos maiores de 18 anos, e no horário diurno. Menores de idade, na rua, depois de 23h, só acompanhados dos responsáveis.
À primeira vista, parece uma atitude louvável, uma vez que nossas crianças e adolescentes são alvos fáceis e constantes de traficantes de drogas e aliciadores de toda espécie. Mas é preciso pensar uma vez mais. Será que está certo proibí-los de circular livremente, revistá-los, abordá-los nas ruas? Apesar de o juiz Fernando Antônio de Lima garantir que os ‘menores’ que estiverem em trânsito, da escola para casa, não serão abordados nem revistados, o que está em jogo é muito mais sério do que isso.
Entre os diretamente atingidos pela decisão judicial, as opiniões são divergentes. Uns aprovam, outros acham abusiva. Minha gente, o ECA, em vigor desde 1990 no país, ao dispor sobre a proteção integral das crianças e adolescentes, assegura -lhes o direito de ir, vir e estar nos locais públicos:
Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II - opinião e expressão;
III - crença e culto religioso;
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI - participar da vida política, na forma da lei;
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação.Portanto, segundo o meu entendimento, não é justo que, para se garantir um direito, outro seja violado! A mim, me parece um baita contra-senso.
E vou além: penso que decisões como a deste juiz, com todo o respeito, mostram que em muitos casos parece que ainda estamos sob a vigência do antigo Código de Menores e sua doutrina da situação irregular. Esse era o nome dado à situação do “menor” em situação de abandono ou de delinqüência, objeto da ação da Justiça. Em poucas palavras, o menor era aquela criança ou adolescente pobre, que estava na rua, e que era abordado e levado para as FEBEM’s e FUNABEM’s da vida, para ser alvo de maus-tratos e de toda sorte de abusos.
O ECA veio acabar com isso. Aboliu a expressão menor, pelo sentido pejorativo que anos de prática jurídica preconceituosa lhe conferiram. Elevou crianças e adolescentes à condição de sujeito de direitos, tirando-os da posição de objeto de medidas jurídicas. Assegurou-lhes proteção integral, bem como todos os direitos fundamentais de que trata a nossa Constituição.
Sei que há muito o que se fazer no sentido de garantir que nossos adolescentes e crianças sejam de fato sujeitos de todos os direitos que lhes assegura o ECA. Sei também que este caminho, longo e árduo, segue na contramão de proibições como a que vemos acontecer em Ilha Solteira. Se é verdade que eles precisam ser protegidos, não é menos verdadeiro que tal proteção nada tem a ver com imposições deste tipo, mas deveria passar, antes, por políticas públicas de qualidade, campanhas educativas, maior segurança nos locais públicos, entre tantas outras coisas que podíamos passar horas aqui enumerando.
Concluo reafirmando minha indignação pelo toque de recolher do juiz de Ilha Solteira, e deixando uma pergunta para nossa reflexão: a quem serve esse tipo de medida? Quem ela de fato atinge e o que pretende com isso? Estamos atentos.
4 comentários:
Juizes e suas idéias. Autoritarismo judiciário infelizmente não é tão incomum. E como sempre vem acompanhado por argumentos de boa intensão. Queria saber quem entrou com a ação. Se puder, poste o link da notícia.
Ninguém entrou com ação.
O ECA, no artigo 149, dispõe:
Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:
I - a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em:
a) estádio, ginásio e campo desportivo;
b) bailes ou promoções dançantes;
c) boate ou congêneres;
d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;
e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão.
II - a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores:
a) os princípios desta Lei;
b) as peculiaridades locais;
c) a existência de instalações adequadas;
d) o tipo de freqüência habitual ao local;
e) a adequação do ambiente a eventual participação ou freqüência de crianças e adolescentes;
f) a natureza do espetáculo.
§ 2º As medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral.
O que o Juiz fez, neste caso, foi editar uma portaria que disciplina a permanência de crianças e adolescentes nos locaris públicos. A justificativa é o atendimento ao melhor interesse da criança e à promoção de sua proteção integral.
Os órgãos contrários à medida se apóiam no que diz o parágrafo segundo, onde se lê que as medidas devem se pautar pelo caso a caso, e nunca adquirirem um caráter geral, como está ocorrendo com o Toque de Recolher.
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