Sobre o blog

Vida de ponto-e-vírgula: o modo de vida assim nomeado define-se negativamente: não é ponto, mas também não é vírgula. A vírgula alterna as coisas com muita rapidez. O ponto final é sisudo, sempre encerra períodos! Bem melhor ser ponto-e-vírgula: uma pausa que não é definitiva, e uma retomada que sempre pode ser outra coisa...



segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Coletivo de pensamentos - I

Andar de ônibus às vezes pode ser muito bom pra pensar em algumas coisas - se bem que eu prefira caminhar, enquanto sinto os cheiros da cidade, deixando os pensamentos me levarem, assim como deixo que as minhas pernas me conduzam.

Voltando aos ônibus. Todo dia eu dependo deles pra ir de um lado a outro da cidade, e frequentemente também à cidade vizinha, onde faço meu curso de pós graduação. Pois bem. Eu disse que às vezes o ônibus é um lugar privilegiado pra pensar sobre a sociedade. E é mesmo. Por exemplo: dia desses eu estava em um totalmente lotado. Tive que ficar em pé boa parte do trajeto. Quando isso acontece, eu prefiro ficar na parte de trás do veículo - dá pra ver melhor o que acontece. Pra quem gosta de observar, como eu, não tem lugar melhor.

onibus-lotado1

Some-se ao 'coletivo' lotado o calor de 35 graus, ou mais, que tem feito nessa primavera super-aquecida e você estará diante de uma equação que não tem outro resultado senão aquele que se afigurou como espetáculo trash diante dos meus olhos, naquela tarde abafada: pessoas suadas, molhando de transpiração os bancos forrados de plástico - aliás, de quem foi essa ideia? Isso sem contar o neném que chora, o homem que tira a camisa, o celular que toca um funk, a pessoa que o atende aos berros... E eu ali, pensando onde foram parar as fronteiras do público e do privado em nossa sociedade.

O homem sem camisa, sentado rente à janela, ao lado de uma jovem mãe com seu bebê no colo, ignora totalmente que o calor que ele está sentindo não o autoriza a desfazer-se de parte de sua indumentária, pois aquele ali é um local público, de uso coletivo. A despeito disso, ele está sem camisa, cochilando encostado na lateral do busão, enquanto o sol faz pingar lágrimas de suor dos poros de seu rosto, já meio envelhecido, e de suas costas, encarregadas de ensopar o revestimento do assento.

Andar sem camisa é prática comum entre os homens em nosso país tropical. Tudo bem, eles podem, que bom pra eles, nada contra. E, apesar de o movimento feminista ter queimado sutians pra que nós mulheres tivéssemos a mesma sorte, a moda por aqui não pegou - e desconheço lugar no mundo em que tenha pegado. De todo modo, é causa que não tenho muito interesse em defender.

Também não sei se existe um manual de etiqueta para tirar a camisa em público, mas penso que o bom senso deveria ser bom conselheiro. Bom senso, nesse caso, seria praticar o costume em lugares abertos, ao ar livre, evitando-se espaços confinados e de uso coletivo, como os ônibus, vans, metrôs, e transportes do gênero.

Essa coisa do corpo descoberto é bem antiga por aqui. Antes dos portugueses chegarem, os nativos andavam seminus, coisa normal pra eles, bizarra aos olhos estrangeiros. Com a colonização, os índios foram catequizados, descobriram que viviam em pecado, e hoje andam vestidos, enquanto os descenentes dos portugueses andam seminus nos ônibus das cidades...

É um caso, penso, de extrapolação da froteira entre o público e o privado. Você pode fazer coisas em casa, que não é aconselhável fazer na rua. A cultura estabelece o que pode e o que não pode, num lugar e no outro. E isso está sempre mudando, dentro de uma mesma cultura e se compararmos uma cultura com outras. Até o início do século XX, a vestimenta dos homens e mulheres no Brasil não era muito condizente com o nosso clima tropical. Hoje, mantêm-se alguns costumes, como advogados terem de usar terno para ir trabalhar, mesmo quando faz 40 graus, e homens não poderem entrar em muitas repartições públicas usando bermudas ou shorts - que dirá sem camisa! - se bem que às mulheres se permita usarem saias nesses locais, também por uma questão de costume: no tempo em que ficava feio para elas usar calças compridas, "coisa de homem", a saia era tida, ao lado do vestido, como vestimenta mais apropriada às mulheres. Hoje, de uma maneira geral, o jeito do brasileiro se vestir mudou bastante e adaptou-se ao clima do país – permitindo que homens e mulheres andem menos cobertos do que antes e tornando a exposição do corpo em público algo tão natural quanto beber água pra matar a sede.

Continua…