Sobre o blog

Vida de ponto-e-vírgula: o modo de vida assim nomeado define-se negativamente: não é ponto, mas também não é vírgula. A vírgula alterna as coisas com muita rapidez. O ponto final é sisudo, sempre encerra períodos! Bem melhor ser ponto-e-vírgula: uma pausa que não é definitiva, e uma retomada que sempre pode ser outra coisa...



sábado, 24 de abril de 2010

A Justiça da Infância e da Juventude e as feridas abertas do sistema socioeducativo brasileiro




“O Conselho Nacional de Justiça decidiu, na terça-feira (20), aposentar compulsoriamente a juíza Clarice Maria de Andrade, que manteve por 26 dias uma adolescente presa em cela masculina com cerca de 30 homens, na delegacia de polícia de Abaetetuba/PA.
A magistrada foi condenada por ter se omitido em relação à prisão da menor, que sofreu torturas e abusos sexuais no período em que ficou encarcerada irregularmente. A menina foi presa em 2007 por tentativa de furto, crime classificado como afiançável. Segundo Felipe Locke Cavalcanti, a juíza conhecia a situação do cárcere, já que havia visitado o local três dias antes, verificando a inexistência de separação entre homens e mulheres assim como as péssimas condições de higiene.
Também pesaram contra a juíza as provas de que ela teria adulterado um ofício encaminhado à Corregedoria-Geral do Estado, que pedia a transferência da menor, após ter sido oficiada pela delegacia de polícia sobre o risco que a adolescente corria. "Ela retroagiu a data do ofício para tentar encobrir sua omissão", completou o relator.
Segundo Locke Cavalcanti, os dois fatos são gravíssimos e comprometem a permanência da juíza na magistratura. Por isso decidiu pela aposentadoria compulsória, que é a pena máxima no âmbito administrativo, além de encaminhar cópia dos autos ao Ministério Público do Pará para que seja verificada a possibilidade de proposição de uma ação civil pública. Caso seja ajuizada a ação civil pública, a magistrada poderá perder o cargo ou ter sua aposentadoria cassada. (Com informações do CNJ).”


***
A notícia não menciona, mas a adolescente, por sua condição peculiar de desenvolvimento, deveria ter cumprido medida sócio-educativa em estabelecimento próprio para este fim, e jamais em cela comum destinada a adultos.
Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração.

Além disso, a privação de liberdade sofrida pela adolescente denota outra grave violação ao ECA, que estabelece, em seu artigo 122: A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.


Como se vê, em se tratando de tentativa de furto o ato infracional praticado pela adolescente, o que não pressupõe grave ameaça nem violência, seria mais adequado que a juíza tivesse optado por outra medida, como advertência ou prestação de serviços à comunidade. Ainda mais porque, no parágrafo segundo do referido artigo, lemos ainda:

§ 2º. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.

A Justiça da Infância e da Juventude, no que tange ao comentimento de ato infracional, em nosso país ainda é uma ferida aberta, apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente estar perto de completar 20 anos (em 13 de julho de 2010).

Quase não existem estabelecimentos adequados à internação desses jovens, de modo que não é exagero afirmar que muitos se transformaram em depósitos de gente, sem a menor chance de qualquer trabalho educativo ser realizado ali. Exemplo vergonhoso é o do Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro, também conhecido como "inferno" no jargão judicial. Não é difícil imaginar os motivos.

Meninos internados no IPS - Instituto Padre Severino.


"Paredes caindo aos pedaços, mau-cheiro absoluto, goteiras e vazamentos por todo lado, ausência total de condições mínimas de higiene – quase nenhum dos meninos tem escova de dentes, não há banheiros, mas buracos no chão e esgoto espalhado, ratazanas e baratas invadem os compartimentos gradeados idênticos a celas em que os meninos se amontoam..." Continua aqui.

Em que pese o fato de o Padre Severino ser um estabelecimento de internação provisória, destinado aos adolescentes que aguardam a sentença judicial, são muito comuns os casos em que a internação ultrapassa os 45 dias previstos em lei para esta espera.

Outro exemplo escandaloso é o do Educandário Santo Expedito, também no Estado do Rio, alvo da pressão de diversos organismos nacionais e internacionais, no sentido de seu imediato fechamento, como a ONG Projeto Legal e o ChildHope, que criaram um cartão postal para ser enviado ao Governador Sérgio Cabral. No postal, o ESE é comparado a Guantánamo, que será fechado.
Corredor do Educandário Padre Severino - foto Luís Alvarenga


Com funcionários denunciados por tortura, não é de hoje que o ESE demonstra sua falência. Para quem não sabe, o local é um antigo presídio, e está em total descumprimento às exigências do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Sinase.


Um levantamento feito pelo Ipea aponta que: "embora se registrem alguns progressos, com a construção de unidades mais compatíveis com a norma legal, e, em alguns estados, a descentralização das mesmas, ainda ocorrem inúmeros problemas, como instituições ainda concebidas nos padrões do antigo Sistema FEBEM, superlotação, maus tratos, tortura e falta de capacitação dos recursos humanos. Existem ainda casos extremos de violência em diversas unidades, culminando com rebeliões e mortes de adolescentes."


O mesmo estudo ressalta, ainda,  "a fragilidade do sistema de aplicação de medidas socioeducativas não privativas de liberdade, a baixa municipalização do sistema e a falta de unidades descentralizadas nos estados".


terça-feira, 20 de abril de 2010

Escândalos, ineficiência do Estado e violações de direitos

justica-cega
Themis, deusa da Justiça. Quadro de Kinuko Y Craft.
Quando soube, pela TV, que o pedreiro Ademar Jesus da Silva fora encontrado morto na cela da Delegacia de Combate a Narcóticos (Goiânia), no domingo 18/04, quase não acreditei, mas é verdade. A versão da polícia é a de que o assassino confesso dos seis rapazes de Luziânia teria cometido suicídio, enforcando-se com  o  tecido de um colchão.

Trata-se de uma reviravolta no caso, e é preciso cobrar explicações das autoridades competentes. Como bem colocou o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, o sistema carcerário brasileiro é "falho e desumano, [e] acaba estimulando o crime ao invés de proporcionar a recuperação do apenado".
Ophir Cavalcante disse ainda, em nota publicada pela OAB, que “agora não mais teremos uma só investigação sobre as circunstâncias que levaram um juiz a liberar um psicopata, mas outra para saber como esse psicopata, depois de assassinar seis garotos, morreu sob a vigilância do Estado".

O representante da OAB parece não estar convencido da veracidade da versão apresentada pela Polícia, de que o pedreiro teria cometido suicídio. Como ele, estamos atentos aos próximos acontecimentos do caso Ademar, esperando que a policía apresente esclarecimentos o quanto antes à sociedade.

Não podemos mais tolerar a falta de explicações plausíveis e a ineficência do Estado em matéria de segurança pública. Também já chegou ao limite do intolerável o descaso para com a garantia constitucional  dos direitos humanos dos presos brasileiros. A morte de Ademar é mais um capítulo de uma história cheia de escândalos, ineficiência do Estado e violações de direitos, que se confunde com a própria história do sistema penitenciário em nosso país.

Fonte:

sábado, 17 de abril de 2010

O exame criminológico como dispositivo de poder psicológico

A história do pedreiro Adimar de Jesus, quarenta anos, preso no último dia 10, acusado de estuprar e matar seis jovens rapazes em Luziânia - Goiás, está reacendendo polêmicas no meio jurídico brasileiro, como a da progressão de regime e o monitoramento eletrônico de presidiários. Em 2005, Adimar fora condenado por crimes sexuais a uma pena de 10 anos e 10 meses de prisão mas, no fim do ano passado, reconquistou a liberdade, benefíciado pela progressão de regime.
adimar
Imagem: G1.com
A CPI da Pedofilia já ouviu Adimar, que confessou ter matado os seis meninos entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010 após estuprá-los, e os deputados querem interrogar também o juiz que concedeu a progressão para o regime aberto, por considerarem arbitrária a decisão do magistrado, uma vez que existiriam indícios de psicopatia atestados pelo laudo psiquiátrico, embora o juiz Luiz Carlos de Miranda, que julgou o caso, afirme que o exame psicológico não apontou anormalidades.

No dia 14 de abril, durante reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito já citada, estiveram presentes representantes de órgãos de defesa da criança e do adolescente, o delegado responsável pelo caso, parlamentares, e o psicólogo Edilson de Araújo, representante do Conselho Regional de Psicologia da 1ª Região (Distrito Federal), que na ocasião foi questionado pela deputada Betinha, sobre como o exame criminológico permitiu a liberação de um assassino confesso.
A pergunta da parlamentar reflete um entendimento quase unânime, por parte da sociedade civil, de muitos juristas e de técnicos atuantes nesse campo, a saber: o de que um tal instumento – o exame criminológico – deveria ter o poder de identificar indícios de que o sujeito não voltará a praticar delitos no futuro. Atentem para o fato de que aquilo que se espera do psicólogo é que emita um juízo acerca de uma questão virtual, que não está colocada no tempo presente.

A mim, como psicóloga, interessa discutir especialmente a atuação dos psicólogos jurídicos no interior dos presídios brasileiros, o que se espera de sua prática e em que medida correspoder a tais expectativas resulta em uma atuação leviana, apenas visando reconhecimento num meio tradicionalmente ocupado pelos chamados operadores do direito. Quero propor, a partir de um olhar foucaultiano, pensarmos esse instrumento chamado exame criminológico como dispositivo de poder, operado pelo saber psi.

A Lei de Execução Penal (LEP), nº 7.210, de 11 de julho de 1984, estabelece que os técnicos do Centro de Observação Criminológica, lugar autônomo da instituição carcerária, realizarão os exames criminológicos com intuito de fazer prognósticos de não-delinquência para casos de livramento condicional. Em situações de autores de crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (caso do pedreiro em questão), deverão ser constatadas também condições que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir (art.83 do Código Penal).

O Supremo Tribunal Federal, através da súmula vinculante número 26 de 2009, decidiu pela não obrigatoriedade do exame criminológico, alterando, portanto, a LEP e o Código Penal, e deixando a critério do magistrado que julgar pertinente sua utilização, solicitar à equipe multidisciplinar a feitura de tal documento. Contudo, se optar por pedir o exame, fica obrigado o juiz a fundamentar sua decisão no laudo em questão (STJ, 08/02/2009).
C_PERÍC_1_20080426_132410
Imagem: itcp.com

O que a imprensa de maneira geral não aborda, e que desejo aqui discutir, são os mecanismos que estão na base da realização deste exame. Um dos sites que consultei trazia, abaixo da matéria sobre Adimar, dezenas de comentários de pessoas comuns indignadas, defendendo de maneira apaixonada uma maior dureza por parte dos legisladores, mais prisões e punições mais severas. Muitos se referiam ao exame criminológico como prova inconteste da doença do criminoso e da imprudência do magistrado que o soltara meses antes, em que pese que, segundo as palavras do próprio juiz, o exame psicológico nada apontara nessa direção. A mesma reportagem continha a declaração de uma psiquiatra forense, para quem a questão da psicopatia do preso estava clara. E mais: a profissional afirmava que “o que interessa ao governo é vaga na cadeia. A pena para crimes hediondos foi diminuída para dar essas vagas. Dessa forma, o sistema vem soltando esses sujeitos, demonstrando que está pouco ligando para o que possa acontecer à sociedade”. Investida da autoridade que o título de coordenadora do departamento de psiquiatria forense da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) lhe confere, a fala da psiquiatra ganha respaldo nas opiniões dos cidadãos comuns, bombardeados por uma imprensa sensacionalista que faz do medo seu filão mais rentável.

Não se questiona como o exame é feito e se seus resultados de fato correspondem à aplicação de uma ciência criminológica. Parece estar dado: o exame existe, os técnicos estão lá para realizá-lo e basta que os juízes o apliquem para que tudo fique onde deve ficar: a anormalidade trancafiada bem longe e a vida normal seguindo, normalmente…

Muitos estudiosos e psicólogos, ligados à criminologia crítica, são contrários à aplicação deste exame e a literatura em psicologia jurídica é rica em teses que demonstram de maneira irrefutável como este saber se constituiu de forma arbitrária e utilitária no interior da chamada criminologia.

Salo de Carvalho, professor de ciências criminais da UFRGS, lembrando Foucault, afirma que a “técnica criminológica, ao se colocar como o discurso da ‘verdade’ no processo de execução, acaba por reeditar um sistema de prova tarifada, típico dos sistemas inquisitivos pré-modernos, que incapacita as normas de garantia, visto obstruir contraprova (irrefutabilidade das hipóteses)” - (Carvalho, 2008: 149) .

Já Vera Malaguti Batista, professora de criminologia na Universidade Cândido Mendes, sustenta que: “estes quadros técnicos, que entraram no sistema para humanizá-lo, revelam em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as sentenças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social” (Batista, 1997: 77).

Entre os psicólogos, a professora Cristina Rauter, importante pesquisadora da atuação destes profissionais no sistema penitenciário, à luz da criminologia crítica, aponta para o que chamou de exercício de futurologia por parte destes técnicos, ao fabricarem os laudos de exame criminológico que vão fundamentar as decisões jurídicas. Isso porque a demanda que precisam responder é a de prever futuros comportamentos delinquenciais (Rauter, 1989), tarefa para a qual muitos se sentem qualificados a realizar, emitindo juízos de valor sem nenhum conteúdo científico.
bola_de_cristal
Imagem: Bola de cristal en mrtlaloc.files.wordpress.com
Para concluir, é preciso esclarecer que não se trata nem de desqualificar ou negar a possibilidade de atuação dos psicólogos no sistema carcerário, tampouco negar o crime confesso do pedreiro Adimar e se furtar a submeter-lhe as sanções cabíveis, bem como o tratamento adequado à suas necessidades psicológicas. Também não é nossa intenção desprezar a dor das famílias que perderam seus entes. O que se pretendeu defender neste artigo foi a possibilidade de uma atuação profissional com viés mais crítico por parte dos psicólogos. Pautemos nossa prática e discursos em ações afirmativas de outras formas de subjetividade, e não em preconceitos sociais que só têm servido para mistificar um suposto saber psicológico capaz de predizer comportamentos.
O sistema jurídico brasileiro prescinde de documento tão pobre de cientificidade e tão carregado de preconceitos sociais como é o exame criminológico.
Fontes:
Carvalho, Salo de. (2008) O papel da perícia psicológica na execução penal, in: Gonçalves, Hebe Signorini & Brandão, Eduardo Ponte. Psicologia Jurídica no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: NAU Editora.
Batista, Vera Malagutti. (1997) O proclamado e o escondido: a violência da neutralidade técnica, in: Discursos Sediciosos (03). Rio de Janeiro: ICC/Revan.
Rauter, Cristina Mair (1989) Diagnóstico Psicológico do Criminoso: tecnologia do preconceito, in: Revista do Departamento de Psicologia da UFF, Niterói.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Tragédia? Não para o capital e seus cínicos representantes

Por Marcelo Badaró

Moro entre Niterói e Santa Teresa e escrevo quando muitos de meus vizinhos nos dois locais não tem mais onde morar, depois de três dias de chuvas que castigam o Grande Rio. Muitos outros não sobreviveram. Somente no Morro do Bumba, em Niterói, a estimativa é de que 200 pessoas possam ter morrido soterradas.

Estimativas, não dados precisos, porque aquelas pessoas que moravam na encosta de um antigo aterro sanitário são realmente tratadas pelo Estado como resíduos urbanos. Não há cadastramento da área para precisar o número de casas e pessoas atingidas. Mas o prefeito da cidade, o Sr. Jorge Roberto da Silveira (PDT), afirmou na véspera desse desabamento, quando o número de vítimas em Niterói já ultrapassava 60 pessoas, que o número de casas em áreas de risco na cidade era muito pequeno para justificar obras de contenção de encostas muito caras, sendo mais barato remover os moradores dessas áreas. Nada a estranhar, partindo de um prefeito que tomou como prioridade asfaltar as ruas da Zona Sul (sem as devidas obras de drenagem) e construir torres panorâmicas, mas que destinou no Orçamento Municipal de 2010 apenas 50 mil reais para Obras de redução de risco a desabamentos e escorregamentos de encostas, quando gasta mais de 2 milhões por ano somente com o custeio de um Conselho Consultivo, no qual reduz os riscos de amigos e correligionários com uma polpuda sinecura, conforme denunciou o vereador Renatinho (PSOL).

Para os trabalhadores e trabalhadoras mais pauperizados, que só encontraram aquelas encostas para morar, a solução “mais barata” é a remoção. Nada se diz porém, das ocupações de outras encostas, tão ou mais irregulares e também sujeitas a deslizamentos de terra, como ocorreu na Estrada Fróes, área “nobre” para a especulação imobiliária da cidade, que há poucos anos conquistou concessões da Prefeitura para construir um imenso condomínio de mansões e prédios de luxo em local que deveria ser destinado à preservação ambiental.

Remoção! é, aliás, a palavra de ordem. O governador Sérgio Cabral (PMDB), ao lado do presidente Lula da Silva (PT) e com sua aprovação apressou-se a definir os responsáveis pelas mortes: os moradores das favelas cariocas, que teimam em construir em áreas de risco. Por isso, afirmou a correção de sua proposta de construção de muros “ecológicos” de contenção (complementados, é claro, pelas placas de “isolamento acústico”). Tais instrumentos, passo adiantado para converter favelas e áreas periféricas de guetos, que já são, em campos de concentração, para mais eficiência na ação dos caveirões e UPPs (todos “pacificadores”), agora são apresentados como solução para o problema das chuvas. Ao invés de urbanização das favelas, regularização do direito ao solo, construção de moradias decentes e contenção das encostas, a “contenção” das pessoas, pelos muros e armas. E se remoção é a solução, Cabral também anunciou que a Polícia Militar estava a disposição de todos os prefeitos para efetivar essa política.

Eduardo Paes (PMDB), o prefeito do Rio, que coincidentemente era o “prefeitinho” de César Maia na região da Barra da Tijuca e Jacarepaguá, quando das também trágicas enchentes de 1996, é o que mais rapidamente se apresentou para defender a necessidade das remoções, amplas, gerais e irrestritas, classificando de demagogos os que a elas se opõem. A lista começa pelos moradores do Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, castigado pelas chuvas desta semana, mas logo se amplia para todas as favelas que já haviam sido listadas como prioritárias para remoção em função das Olimpíadas, em número muito superior ao de qualquer levantamento de áreas de risco na cidade.

Quanto à prevenção, agora anuncia-se que o governo federal enviará 200 milhões para o estado do Rio de Janeiro. Tarde demais, como sempre, pois até aqui nenhum tostão foi enviado para obras de prevenção de enchentes e contenção de encostas este ano, e descobriu-se agora que o ex-Ministro Geddel Vieira Lima (PMDB), candidato ao governo baiano, enviou 50% das verbas federais de prevenção de desastres para a Bahia, enquanto Rio recebeu menos de 1%. Mas não se desesperem os que estão sem teto por conta das chuvas, pois o governo federal liberou os saques das contas de FGTS (dinheiro do próprio trabalhador) dos atingidos. FG o que?, perguntam os milhares de trabalhadores precarizados que foram atingidos por esse desastre.

O caso é que hoje, como tudo na sociedade de classes instituída pelo poder do capital, as tragédias não são vistas pelo mesmo ângulo por todos. Para os interesses do capital imobiliário, da construção civil, dos monopólios do transporte e serviços públicos e de seus representantes, eleitos para ocupar os governos através de campanhas que financiam com fartura de recursos, as tragédias, como tudo mais, são um bom negócio. Naomi Klein, no livro A doutrina do Choque documentou e analisou como crises econômicas, catástrofes naturais (furacões, terremotos, tsunamis) e guerras, são cada vez mais instrumentalizadas pela lógica do capital, como momentos “excepcionais”, em que grandes comoções criam o clima necessário para a aplicação das doutrinas de choque, com retirada de direitos, privatizações e criminalizações. (ver a esse respeito a entrevista publicada na revista Classe, no. 1, em www.aduff.org.br)

Nada mais apropriado para se entender o Brasil de hoje e, em especial, o Rio de Janeiro. Aqui, na terra dos “choques de ordem”, a tragédia fomentada pelo capital – que transforma o solo urbano em uma de suas principais áreas de investimento e especulação e inviabiliza a moradia e vida digna da maioria da classe trabalhadora – não está sendo pranteada pelos governantes. Dias de luto oficial e lamentos na TV não escondem as comemorações daqueles que nada fizeram para prevenir desastres, porque esperam por eles, para impingir mais “choques” à população. A nós cabe sim a comoção com a tragédia que retira tantas vidas, mas também a indignação, semente da reação, que não pode tardar.


Marcelo Badaró é professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.

Texto recebido via e-mail e originalmente publicado no Blog do Vereador Renatinho.