Sobre o blog

Vida de ponto-e-vírgula: o modo de vida assim nomeado define-se negativamente: não é ponto, mas também não é vírgula. A vírgula alterna as coisas com muita rapidez. O ponto final é sisudo, sempre encerra períodos! Bem melhor ser ponto-e-vírgula: uma pausa que não é definitiva, e uma retomada que sempre pode ser outra coisa...



domingo, 12 de abril de 2009

Uma crônica

A professora começou a aula de uma maneira informal. O resultado que esperava obter – e conseguiu - era descontrair os alunos de forma a criar um ambiente onde os assuntos transcorressem de forma fácil e agradável. Por se tratar de uma turma de pós-graduação, e sendo ela uma estudante ainda graduanda em Letras, podemos compreender sua tentativa de informalizar a relação professora-alunos, no sentido de que pudéssemos ficar todos à vontade; a primeira, em sua provável insegurança por ter a sua frente pessoas, em alguns casos, bem mais velhas do que ela; e nós, por estarmos diante de uma figura, que, mesmo sendo a de uma “menina apenas cursando a graduação”, não deixa de estar no lugar de professora – lugar este, marcado pela questão da autoridade e tudo o mais que está em jogo na representação do professor em nossa sociedade e que não vem ao caso de nossa narrativa.

O que vem ao caso é justamente o que se deu no encontro daquela professora com aqueles alunos naquele dia específico. O tom informal, ao qual nos referimos no início, ficou por conta do bate-papo (proposto pela ela e aceito por nós) em torno de quatro questões sobre a língua portuguesa.

A primeira delas era a seguinte: “Português é muito difícil”. Não foram poucos, naquela turma, a levantar a mão em sinal de concordância com a afirmação escrita no quadro. Eu mesma ergui meu braço, corajosamente - coisa que jamais faria em tempos não muito remotos, impedida pela timidez. Mas, questionados sobre o motivo de atribuírmos ao idioma materno tamanha dificuldade, nos vimos diante da questão: é o português que é difícil, ou a sua gramática normativa? Ficamos com a segunda opção, convencidos de que português todos ali sabíamos, afinal, somos falantes desta língua desde nossos primeiros balbucios.

Dito isso, analisamos a segunda frase: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”. É fato que, em nível de senso-comum, somos quase unânimes em concordar de imediato com afirmações desse tipo e foi o que se observou também ali. Mas quando se coloca em questão o conceito de “erro”, irremediavelmente tem-se de ver as coisas sob uma perspectiva diferente. E qual seria ela? Foucault pareceu apropriado. Mais que isso, ele pareceu fundamental. Não podemos falar em certo e errado sem considerar o que está em jogo no estabelecimento de verdades; sem levar em conta a relação de forças que subjazem à lógica de nossa gramática normativa. E foi isso o que fizemos; ainda que não tivéssemos tratado a questão de forma claramente foucaultiana, o olhar foi sempre este – pelo menos o meu olhar foi.

Questionar as verdades é perguntar-se que relações de poder/saber estão em jogo em dado regime de verdades. Quando percebemos que o falar errado se refere justamente à fala do pobre, do excluído socialmente, fica mais difícil fecharmos os olhos à questão que se coloca – é preciso marcar o lugar da diferença, que será ocupado por aqueles que não se assemelham a nós, outros, que tivemos acesso a uma escola de qualidade e que estamos incluídos na ordem social. Mas estar incluído numa tal ordem não é sinônimo de domínio da norma culta da língua, ou não se justificaria a existência, num curso de pós-graduação, de uma disciplina sobre língua portuguesa, cujo objetivo é disciplinar a escrita dos futuros especialistas (nós) para não fazermos feio na elaboração do trabalho de conclusão de curso - a famosa monografia! Então, fica claro que o erro se define menos por ser uma fala que está em desacordo com a gramática normativa, e mais por se tratar de uma fala que marca um certo lugar de exclusão social e econômica.

Outro ponto que não ignoramos naquela discussão certo/errado é o que se refere ao dinamismo da língua. Ora, se a língua é uma estrutura viva e admitimos que ela se faz e refaz na fala dos falantes, como podemos insistir em dizer que o jeito de falar do pobre ou do nordestino ou do jeca está errado? Do ponto de vista lingüístico, se a comunicação se fez, não houve erro. Esse erro só pode ser pensado em termos de um sistema de regras que todos possam usar para se comunicar de uma maneira dita culta ou correta. Não quero aqui negar a importância de tal sistematização, mas apenas apontar para os efeitos que esse discurso pode produzir.

A terceira frase, “É preciso saber gramática para escrever e falar bem” gerou consenso entre os presentes sobre o fato de que o conhecimento da gramática é mais importante para a escrita - desde que considerada em um certo âmbito específico que é o da escrita formal, acadêmica, no nosso caso - do que para a fala. Quantos de nós, fluentes falantes da língua, sentimos dificuldade na hora de escrever corretamente? Provavelmente, muitos. Isso ocorre porque, na fala, contamos com recursos que não estão presentes na escrita, tais como entonação, gestual, expressões faciais e corporais, entre outros.

Sobre a quarta e última frase escrita no quadro, que trazia a afirmação: “O domínio da norma culta é instrumento de ascensão social”, novamente a perspectiva foucaultiana se fez e se faz necessária e atual, pois, apesar de ser uma tendência crescente ouvirmos de especialistas em mercado de trabalho que pessoas que falam bem têm maiores chances de abrirem vantagem em relação a outros candidatos menos preparados nesse sentido, durante uma entrevista de emprego, isso não significa que as primeiras ascenderão socialmente.

O que me parece é que tal discurso - bem como outros tantos - tem a função de ocultar as verdadeiras razões pelas quais verificamos tanto desemprego e sub-emprego em nosso país. Fica claro, para mim, que mais uma vez não podemos nos furtar a considerar a situação com um olhar foucaultiano. Um olhar que interroga que regimes de verdade estão sendo postos em funcionamento e que relações de poder estão em cena nesse palco onde problemas macro-estruturais são dissimulados em micro-questões de foro individual, cabendo ao sujeito a responsabilidade por seu fracasso.

O desfecho dessa aula? Uma produção individual de texto, tendo como tema a pergunta: O que é necessário para se escrever e falar bem? Não deixa de ser interessante uma aula que, de início, pretendeu ser democrática e estar a serviço de desconstruir preconceitos, terminar com cada um sentado em seu lugar, produzindo textos individuais, que serão avaliados do ponto de vista do domínio que cada um tem da norma culta da língua. Mas isso são apenas pensamentos...

3 comentários:

Lica Richa. disse...

Oba! Blog novo!
Parabéns...e obrigada*!

;)

Tikão disse...

Espetacular!
Nunca pare de escrever essas coisas linda, por favor!

Bruno disse...

Todas as implicações sociais do domínio da língua merecem comentário, mas acho que precisaríamos de mais espaço para tanto. Principalmente as que se referem a questão da identidade, assunto que tanto me agrada. A construção de identidades nacionais forçou o encolhimento de várias línguas, em nome das línguas vernáculas que deveriam substituí-las. Em nosso país a imposição linguística foi bem sucedida, temos poucas comunidades falando outros idiomas. Ainda assim, não deixam de falar o português.
Deixo ainda mais um comentário sobre nosso idioma. A gramática não parece tão fundamental à escrita quando esta ocorre em determinados espaços virtuais. Exemplo disso são a linguagem de MSN, ou o miguxês.