O relógio marca uma hora e dois minutos. A madrugada está silenciosa, exceto pelo som que meus dedos extraem das teclas enquanto digito. O monitor do meu computador dá sinais de cansaço, e é difícil ler o que estou escrevendo, porque as imagens na tela aparecem borradas. Minhas costas doem um pouco, mas persisto. Desliguei o msn há poucos minutos, e decidi que ia dormir, mas lembrando de um papo na faculdade hoje mais cedo, em que alguém falou em Espinosa (Baruch de Spinoza), deu vontade de ler alguma coisa. Reler, na verdade.
Abri o site Dossiê Gilles Deleuze e escolhi Spinoza e nós, do livro Spinoza – Filosofia Prática, de Gilles Deleuze. Aliás, este livro, eu o tenho. Nele, o autor trata da questão do que é ser espinosista. O que é o modo de viver de quem encara a vida como Spinoza.
Estou tentando entender um pouco melhor o que é isso. Acho que Vinicius de Moraes era um espinosista (não sei se declarado ou não, mas como diz Deleuze, “a gente se torna então espinosista antes de ter percebido o porquê.”). Vinicius disse: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
Para Espinosa, segundo nos ensina Deleuze, o corpo é definido de duas formas: uma, cinética, diz respeito às relações de movimento e de repouso, de velocidades e lentidões. Sãos elas que definem o que é um corpo. Mas não só elas. Há uma segunda forma pela qual os corpos são definidos: é a forma dinâmica, segundo a qual os corpos afetam e são afetados. Relaciona-se com os afetos de que um corpo é capaz.
“(…)é pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos.”
“Concretamente, se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e de ser afetado, muitas coisas mudam.
Definiremos um animal, ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pêlos afetos de que ele é capaz.
Capacidade de afetos, com um limiar máximo e um limiar mínimo, é uma noção freqüente no pensamento de Espinosa.”
Não se pode saber antecipadamente o que pode um corpo. Não sabemos de antemão os afetos de que somos capazes. Tal saber nos é possível apenas a partir da experimentação, dos encontros com outros corpos, e dos agenciamentos que vamos produzir. Composição e decomposição, movimento e repouso, velocidade e lentidão, capacidade de afetar e de ser afetado. Por isso lembrei de Vinicius. A figura do poeta que tinha sede de vida, que se entregou aos encontros com uma audácia da qual poucos são capazes…
O texto deleuziano tem beleza. Seduz. Provoca. Faz pensar. É inquietante, como a Ética de Espinosa.
Uma hora e 47 minutos: vou finalmente pra cama, me perguntando quais os afetos de que sou capaz e pensando numa conversa com um amigo (Sérgio, do blog http://www.ocampones.wordpress.com/) , há alguns dias, em que falávamos justamente sobre as diferenças entre os dois planos em que estamos situados e a partir do qual falamos: ele, o da transcendência; eu, o da imanência. A conversa foi a continuação de um debate iniciado a partir de um post meu, que gerou um post dele, em seu blog, dias antes.
Muitas outras coisas passam pela minha cabeça, e todas estão, de alguma forma, relacionadas com tudo isso que é a existência.
Vou encontrar-me com a cama, o edredom e experimentar a capacidade de ser afetada por eles. Uma hora e 56 minutos. A madrugada segue tranquila e, agora, mais silenciosa. Calarei o teclado. Minha voz, não!
4 comentários:
Me fez pensar na palavra afeto de forma diferente. Na verdade a ligação com afetar parece óbvia agora. Trouxe também a lembrança do poema em que o poeta se traduz como "coisa de intermédio", que só existe a meio caminho entre um e outro.
Gostei muito do que escrveu. Fizeste uma letura 'clean' e coerente. Fico abismada com tantas leituras equivocadas e contraditórias acerca do pensamento de Deleuze.
Muito interessante seu blog. Voltarei mais vezes.
Abraço,
Esse poema ao qual vc se refere (O outro, de Mario de Sá-Carneiro) é bem representativo disso mesmo. Não sei se Sá-Carneiro tinha essa filiação filosófica com Spinoza, mas ele sempre me faz pensar no quanto somos determinados a partir de fora.
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mario de Sá-Carneiro
(Lisboa, fevereiro de 1914)
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