A história do pedreiro Adimar de Jesus, quarenta anos, preso no último dia 10, acusado de estuprar e matar seis jovens rapazes em Luziânia - Goiás, está reacendendo polêmicas no meio jurídico brasileiro, como a da progressão de regime e o monitoramento eletrônico de presidiários. Em 2005, Adimar fora condenado por crimes sexuais a uma pena de 10 anos e 10 meses de prisão mas, no fim do ano passado, reconquistou a liberdade, benefíciado pela progressão de regime.
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A CPI da Pedofilia já ouviu Adimar, que confessou ter matado os seis meninos entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010 após estuprá-los, e os deputados querem interrogar também o juiz que concedeu a progressão para o regime aberto, por considerarem arbitrária a decisão do magistrado, uma vez que existiriam indícios de psicopatia atestados pelo laudo psiquiátrico, embora o juiz Luiz Carlos de Miranda, que julgou o caso, afirme que o exame psicológico não apontou anormalidades.
No dia 14 de abril, durante reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito já citada, estiveram presentes representantes de órgãos de defesa da criança e do adolescente, o delegado responsável pelo caso, parlamentares, e o psicólogo Edilson de Araújo, representante do Conselho Regional de Psicologia da 1ª Região (Distrito Federal), que na ocasião foi questionado pela deputada Betinha, sobre como o exame criminológico permitiu a liberação de um assassino confesso.
A pergunta da parlamentar reflete um entendimento quase unânime, por parte da sociedade civil, de muitos juristas e de técnicos atuantes nesse campo, a saber: o de que um tal instumento – o exame criminológico – deveria ter o poder de identificar indícios de que o sujeito não voltará a praticar delitos no futuro. Atentem para o fato de que aquilo que se espera do psicólogo é que emita um juízo acerca de uma questão virtual, que não está colocada no tempo presente.
A mim, como psicóloga, interessa discutir especialmente a atuação dos psicólogos jurídicos no interior dos presídios brasileiros, o que se espera de sua prática e em que medida correspoder a tais expectativas resulta em uma atuação leviana, apenas visando reconhecimento num meio tradicionalmente ocupado pelos chamados operadores do direito. Quero propor, a partir de um olhar foucaultiano, pensarmos esse instrumento chamado exame criminológico como dispositivo de poder, operado pelo saber psi.
A Lei de Execução Penal (LEP), nº 7.210, de 11 de julho de 1984, estabelece que os técnicos do Centro de Observação Criminológica, lugar autônomo da instituição carcerária, realizarão os exames criminológicos com intuito de fazer prognósticos de não-delinquência para casos de livramento condicional. Em situações de autores de crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (caso do pedreiro em questão), deverão ser constatadas também condições que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir (art.83 do Código Penal).
O Supremo Tribunal Federal, através da súmula vinculante número 26 de 2009, decidiu pela não obrigatoriedade do exame criminológico, alterando, portanto, a LEP e o Código Penal, e deixando a critério do magistrado que julgar pertinente sua utilização, solicitar à equipe multidisciplinar a feitura de tal documento. Contudo, se optar por pedir o exame, fica obrigado o juiz a fundamentar sua decisão no laudo em questão (STJ, 08/02/2009).
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O que a imprensa de maneira geral não aborda, e que desejo aqui discutir, são os mecanismos que estão na base da realização deste exame. Um dos sites que consultei trazia, abaixo da matéria sobre Adimar, dezenas de comentários de pessoas comuns indignadas, defendendo de maneira apaixonada uma maior dureza por parte dos legisladores, mais prisões e punições mais severas. Muitos se referiam ao exame criminológico como prova inconteste da doença do criminoso e da imprudência do magistrado que o soltara meses antes, em que pese que, segundo as palavras do próprio juiz, o exame psicológico nada apontara nessa direção. A mesma reportagem continha a declaração de uma psiquiatra forense, para quem a questão da psicopatia do preso estava clara. E mais: a profissional afirmava que “o que interessa ao governo é vaga na cadeia. A pena para crimes hediondos foi diminuída para dar essas vagas. Dessa forma, o sistema vem soltando esses sujeitos, demonstrando que está pouco ligando para o que possa acontecer à sociedade”. Investida da autoridade que o título de coordenadora do departamento de psiquiatria forense da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) lhe confere, a fala da psiquiatra ganha respaldo nas opiniões dos cidadãos comuns, bombardeados por uma imprensa sensacionalista que faz do medo seu filão mais rentável.
Não se questiona como o exame é feito e se seus resultados de fato correspondem à aplicação de uma ciência criminológica. Parece estar dado: o exame existe, os técnicos estão lá para realizá-lo e basta que os juízes o apliquem para que tudo fique onde deve ficar: a anormalidade trancafiada bem longe e a vida normal seguindo, normalmente…
Muitos estudiosos e psicólogos, ligados à criminologia crítica, são contrários à aplicação deste exame e a literatura em psicologia jurídica é rica em teses que demonstram de maneira irrefutável como este saber se constituiu de forma arbitrária e utilitária no interior da chamada criminologia.
Salo de Carvalho, professor de ciências criminais da UFRGS, lembrando Foucault, afirma que a “técnica criminológica, ao se colocar como o discurso da ‘verdade’ no processo de execução, acaba por reeditar um sistema de prova tarifada, típico dos sistemas inquisitivos pré-modernos, que incapacita as normas de garantia, visto obstruir contraprova (irrefutabilidade das hipóteses)” - (Carvalho, 2008: 149) .
Já Vera Malaguti Batista, professora de criminologia na Universidade Cândido Mendes, sustenta que: “estes quadros técnicos, que entraram no sistema para humanizá-lo, revelam em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as sentenças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social” (Batista, 1997: 77).
Entre os psicólogos, a professora Cristina Rauter, importante pesquisadora da atuação destes profissionais no sistema penitenciário, à luz da criminologia crítica, aponta para o que chamou de exercício de futurologia por parte destes técnicos, ao fabricarem os laudos de exame criminológico que vão fundamentar as decisões jurídicas. Isso porque a demanda que precisam responder é a de prever futuros comportamentos delinquenciais (Rauter, 1989), tarefa para a qual muitos se sentem qualificados a realizar, emitindo juízos de valor sem nenhum conteúdo científico.
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Para concluir, é preciso esclarecer que não se trata nem de desqualificar ou negar a possibilidade de atuação dos psicólogos no sistema carcerário, tampouco negar o crime confesso do pedreiro Adimar e se furtar a submeter-lhe as sanções cabíveis, bem como o tratamento adequado à suas necessidades psicológicas. Também não é nossa intenção desprezar a dor das famílias que perderam seus entes. O que se pretendeu defender neste artigo foi a possibilidade de uma atuação profissional com viés mais crítico por parte dos psicólogos. Pautemos nossa prática e discursos em ações afirmativas de outras formas de subjetividade, e não em preconceitos sociais que só têm servido para mistificar um suposto saber psicológico capaz de predizer comportamentos.
O sistema jurídico brasileiro prescinde de documento tão pobre de cientificidade e tão carregado de preconceitos sociais como é o exame criminológico.
Carvalho, Salo de. (2008) O papel da perícia psicológica na execução penal, in: Gonçalves, Hebe Signorini & Brandão, Eduardo Ponte. Psicologia Jurídica no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro: NAU Editora.
Batista, Vera Malagutti. (1997) O proclamado e o escondido: a violência da neutralidade técnica, in: Discursos Sediciosos (03). Rio de Janeiro: ICC/Revan.
Rauter, Cristina Mair (1989) Diagnóstico Psicológico do Criminoso: tecnologia do preconceito, in: Revista do Departamento de Psicologia da UFF, Niterói.